Capítulo 1

– Vruuum, vruuum, vruuum, vruuum, trak, taraktrak, vruuuum, vruuuum...

Da janela de um pequeno edifício, um homem de parcos cabelos brancos observa o movimento da rua.

– Que barulho ensurdecedor é esse, homem?
– Tem uma multidão na rua, querida. Venha ver.
– Vou esperar passar no noticiário. Meus pés estão frios e prefiro esquentá-los a ficar pendurada na janela.
– Cada um com a sua janela, então querida – disse o homem.

A sombra de um dirigível gela o ar ao encobrir a luz da manhã. Da multidão parada na rua, ouve-se protestos. A enorme mancha do veículo flutuante cruza distorcida e lenta a avenida, escala edifícios e some, desobstruindo a visão da turba. O rumor de suas hélices o impulsionando no ar apaga-se na distância, reverberando ruídos e estalos no câniom de espelho e aço onde penetra. Agora ouve-se apenas o burburinho da multidão e, em seguida, o silêncio da manhã fria de inverno. Usando óculos escuros, alguns de olhos fechados, a gente que toma a larga avenida aprecia o momento.

No dia anterior, um comunicado em rede nacional fez saber àquelas pessoas que na manhã daquele dia uma equipe de cientistas da mundialmente conceituada universidade local daria início a uma experiência científica, cujo objetivo é dispersar o gigantesco acúmulo de nuvens cinzentas que paira nos céus do planeta há cento e cinquenta e dois anos.

"Por volta das sete horas da manhã, horário local, a equipe, chefiada pelo Dr. Atir Kosnikovitz, um grande nome da ciência mundial conhecida, testará um complexo artefatoque lançará aos céus insetos devoradores de nuvens provenientes de Aria-17. Os insetos em questão foram encontrados pelos destemidos astronautas mineradores da UEI em sua sexta expedição ao cinturão de Seliah, treze anos atrás, alimentando-se da densa neblina que envolve o Pico Dorung daquele planeta. Os pequenos seres, denominados insetos devido a aparência bastante similar a das espécies invertebradas de insectóides que povoam nosso planeta, foram coletados e levados a bordo da nave Hércules onde foram congelados e alojados em compartimentos especiais para futuros estudos..."

– É aquela tal máquina que vai lançar os insetos, mulher – diz o homem da janela.
– Estou vendo na TV, já disse – grita a voz pigarrenta.

"–... os testes feitos em laboratório nos deram ótimos resultados. Estamos otimistas. Os nubilófagos são criaturas curiosas. Adaptaram-se rapidamente à nossa atmosfera e as condições climáticas."
"– Dr. Kosnikovitz, há um grande alvoroço por parte dos ambientalistas acerca da 'importação' desses seres alienígenas, alguns preocupados com as condições com que são tratados nos laboratórios, uma vez que estavam em paz devorando nuvens lá em Aria-17, outros..."
"– O que há, de fato, caro Gusmel, é uma mentalidade atrasada que vê a nós, cientistas, como pessoas frias, sem coração, que se alimentam de cálculos e fórmulas matemáticas mergulhados em soluções químicas, etílicas, coloridas e borbulhantes servidas em tubos de ensaio esfumaçantes. Na verdade, caro telespectador, somos gente como você, que tem família e que se preocupa com sua casa, com a vizinhança..."

A mulher lança ao ar uma baforada cinza-amarelada e ri e tosse e se engasga.

– O que houve, querida?
– Nada. Acho engraçado como o Gusmel encolhe os ombros e levanta os dedos quando fala entre-aspas.
– Esse repórter Gusmão é um pateta, não sei como é que você ainda assiste el...
– Gusmel. Esse é o nome dele e não me apoquente com suas críticas. Volte pra sua janela e me deixe em paz.

Cartazes e faixas com palavras de protesto espalham-se sobre as cabeças da multidão que, como chaminés, expelem fumaça branca de suas bocas de dentes rangentes. Há anos, entidades ecológicas questionam a vinda dos insetos de Aria-17 para o planeta Terra, pois temem que proliferem-se descontroladamente e causem problemas em seu novo lar, podendo até vir a mudar seus hábitos alimentares devido a drástica mudança de ambiente que sofreram ao serem tirados de seu habitat natural. Pensadores passaram a questionar o problema, argumentando que a humanidade estaria sofrendo uma espécie de castigo imposto pela Natureza, após tantos anos de exploração e mal uso dos recursos naturais gentilmente cedidos durante milênios. Religiosos concordaram em termos condizentes às suas crenças e afirmaram o retorno de tempos de paz e prosperidade em um futuro próximo, segundo suas empoeiradas escrituras. A polêmica ganhou adeptos na comunidade científica quando surgiram dados que demonstraram a surpreendente adaptabilidade, praticamente imediata, dos insetos de Aria-17 à atmosfera terrestre.

– Eu me recordo desse dia – suspira o homem na janela. – As imagens da equipe de mineração. Alguns deles eu mesmo treinei. Se eu fosse um pouquinho só mais novo, teria embarcado com eles naquela missão.
– E você teria perdido o nascimento de sua neta – resmunga a mulher.
– Ela estaria aqui quando eu voltasse. Uma missão como aquela é única na vida de um homem.
– Se você quisesse mesmo ir, saberia como chegar lá. A idade não foi o que o impediu.
– Quem sabe? – resigna-se o homem ao flertar com lembranças de outrora, momentos secretos que ficaram trancafiados nos porões da memória.


Ouve-se um estrondo seguido de um som agudo como o riscar de um giz branco em um quadro negro. Ouve-se o silêncio, como se a atmosfera evapora-se e o éter tomara conta do planeta. O som não se propaga, não ressoa, deixa de existir em microssegundos. Em seu lugar, expectativa e medo podem ser fatiados no ar. O dirigível da emissora de TV local aponta uma dezena de câmeras para o amontoado de nuvens cinzentas acima. A espessa camada cobre a maior parte do planeta Terra em decorrência de séculos de poluição do ar. O dirigível flutua incansável. Suas câmeras são os olhos do resto do mundo. Lá embaixo, a multidão aguarda.

No céu surge uma coluna vertical invertida; um túnel que atravessa a espessa camada de nuvens. A multidão se espanta e se amontoa mais, querendo aproximar os olhos curiosos do buraco, querendo ver mais, desejando, cada um daqueles homens e mulheres e crianças e idosos, ser o primeiro a apontar o dedo para o que quer que fosse acontecer ou aparecer ali. Em questão de segundos, pipocam túneis similares ao redor do primeiro, transformando o céu cinza numa espécie de peneira gigante por onde entram sutis raios de luz amarelados.